“A vida já é curta, mas nós tornamo-la ainda mais curta, desperdiçando tempo.”
Victor Hugo

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Se houver quem estranhe, ao ouvir Elsa Gomes cantar, que tamanha voz tenha origem num corpo pequenino, cedo compreenderá que não é o corpo de quem canta que define a grandeza da voz, mas a profundidade da sua alma. Esta grandeza revela-se quando, cantando, Elsa preenche não apenas o espaço em seu redor como também o coração de quem a escuta.

Nascida em Lagny-sur-Marne, França, quando chegou a Portugal, a menina de oito anos e cabelos curtos não dominava a língua portuguesa. Isso não impediu, porém, que sucumbisse ao encantamento de Amália, numa tarde de Agosto em casa da avó, ao ver televisão. Amália, também ela de cabelos curtos e linha duras desenhadas no rosto, cantava histórias da Casa da Mariquinhas com “Vou Dar De Beber à Dor”. A imagem fascinou a pequena Elsa e Amália tornar-se-ia, nesse momento, musa e professora.

O destino teria mão no percurso de Elsa que, como Amália, não nascera do fado nem para o fado; era a música que a movia. Fosse ensaiando música popular sobre gravações em cassetes ou participando em encontros de música folclórica; acompanhando o Conjunto Alegria do senhor Joaquim Barreiros – cujo filho, Quim, moldava a paisagem da música popular em Portugal – ou encabeçando espectáculos em casamentos e outros eventos festivos; ou ainda de violino em mão, desvendando o universo da música erudita na Escola Profissional de Música de Viana do Castelo; os dias da pequena Elsa eram preenchidos por música.

Mas no horizonte havia um fado e, à sua frente, revelava-se um longo e imprevisível caminho. Decidida a percorrê-lo, Elsa fez-se à estrada e, pé ante pé, as suas conquistas foram acumulando.

Em apenas quatro anos, termina a licenciatura pela Escola Superior de Música de Lisboa; torna-se docente no Conservatório Regional de Artes do Montijo e no Projecto Orquestra Geração da Escola de Música do Conservatório Nacional; frequenta o Mestrado de Teatro Musical na Escola Superior de Teatro e Cinema; participa como actriz convidada na ante-estreia da revista “Já Viram Isto”, no Teatro Maria Vitória; e integra o Coro Gulbenkian.

A estrada era longa e a vontade de aprender e crescer não dava sinais de abrandamento. Caminhando pelas ruas de Lisboa, Elsa absorvia a cidade e espreitava as casas de fado, fascinada pelo que escutava por portas entreabertas. Não obstante quem suba ao palco ou que nele lute por dar vida à sua arte, a exigência daquele espaço é tremenda e constante. Porquê o fado? Porque, para lá da seriedade, dos xailes, dos grandes brincos à rainha, o fado não é evidente, mas subtil. Porque desafia a encontrar a história por detrás do poema. Porque não basta saber cantar para ser capaz de a contar.

Então, no mesmo ano em que ingressa na classe de Canto da Escola Superior de Música de Lisboa, Elsa lança o seu álbum de estreia – a sua afirmação enquanto fadista. Essa declaração foi ouvida e, em breve, seria convidada a actuar na Cimeira dos Ministros dos Negócios Estrangeiros, em Viana do Castelo. Subiu ao palco e cantou “Havemos de Ir a Viana”, levando a multidão da Praça da Liberdade ao êxtase. O palco tinha-se tornado um segundo lar e fonte de sustento na vida da jovem Elsa, contudo, não imaginaria o impacto que esta experiência teria no seu percurso. Nesse momento, o palco ganhou uma nova dimensão, tornou-se um lugar de onde Elsa seria capaz de cumprir o verdadeiro – e impagável – propósito da sua busca: emocionar-nos com as suas histórias.

Colhido da profundeza das almas amadurecidas e oferecido com a jovialidade da criança que olha sobre o mundo, o fado de Elsa Gomes não se fica pelas palavras, mas assenta sobre elas o convite para uma viagem na companhia da sua voz. Aceitar o convite é aceitar a pureza da amizade que bota a mão para amparar uma queda, ou bota fogo para incendiar uma paixão. E tudo isto sorrindo.
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“A vida já é curta, mas nós tornamo-la ainda mais curta, desperdiçando tempo.”
Victor Hugo
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Se o caminho de Elsa evidencia a sabedoria por detrás das palavras de Victor Hugo, então as suas conquistas não cabem nos limites físicos de um palco. Essas pertencem à memória de quem a ouve cantar e ao infinito potencial emotivo dos corações que se abrem à sua voz. Não é, então, surpreendente que a outrora menina de cabelo curto que estranhava a língua portuguesa, hoje mulher de saias longas que encontra histórias nas entrelinhas dos versos, seja conhecida por terras do norte como “A Fadista”.

António Rodrigues
Charneca de Caparica
Janeiro de 2017

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